sábado, 17 de julho de 2010

Sonhos de infância*

Sob olhares atentos de pais, familiares e amigos, engatinhamos os primeiros centímetros, caminhamos nossos primeiros passos, choramos para dormir ou pedir comida e pronunciamos nossas primeiras palavras. Muitos se divertem com isso, e, para nós, quando crianças, nada é digno de preocupação, apesar de aparecerem os primeiros conflitos, pois nunca queremos comer ou dormir na hora que nossos pais desejam.

Bolas, bonecos e bonecas, velocípede, vídeo-game, bicicleta, quebra-cabeça e diversos outros brinquedos começam a surgir à nossa frente, garantindo entretenimento seja sozinho seja com os(as) novos(as) amiguinhos(as) que crescem conosco. Nossos pais são referências, heróis e heroínas que acompanham as etapas da vida. Aconselham, brigam, chamam atenção e nos amam... Num determinado momento, somos encaminhados pra instituições sociais mais amplas, como a escola. Começam a surgir deveres, provas, ditados, redações... Junto a tudo isso, inevitável defrontar-se com a pergunta que já visa indicar precocemente nossa profissionalização: “O que você vai ser quando crescer?”

É tempo de perguntas, questionamentos, novidades, experiências, machucados, choros, mas também de SONHOS! Certamente o quadro infantil explicitado acima pôde ser vivenciado por mim e por outros que nasceram em famílias que tiveram condições objetivas de fornecer alimentação, lar, estudo e carinho! Mas o que será que acontece com a maioria das crianças e jovens mundo afora? Muitas famílias sobrevivem diariamente sob parcas condições: sem casas para residir tampouco cobertores para proteger do frio ou um leite quentinho com um pão com manteiga para iniciar seus dias! Novamente fui estimulado a escrever essas linhas, diante de mais atrocidades que impedem a materialização de sonhos, sonhos que crianças investem, com sorrisos, gestos e palavras inocentes, mas com a certeza de que teremos um amanhã diferente!

Às vésperas de mais um cenário eleitoral, onde mais do mesmo se apresenta, prometendo e iludindo uma imensidão de seres humanos que mais uma vez acreditam que os votos têm pesos iguais. Depois disso, até a eleição seguinte, multiplicam-se os descasos com a população, os casos de corrupção e os lucros de uma pequena parcela que privadamente se apropria dos sonhos de milhões de crianças e do fruto do trabalho de seus pais, perpetuando a desigualdade que concentra as riquezas e divide as mazelas!

Às vésperas da realização de mais megaeventos esportivos, em que bilhões serão investidos em propagandas e grandes construções de um lado. Do outro, comunidades populares serão removidas de seus batalhados e perversos locais de moradia, a população pobre e trabalhadora será a maior vítima do Choque de Ordem e aceitaremos passivamente a demagogia dos muros de segurança e isolamento acústicos nas vias expressas do Rio de Janeiro(1).

Rio de Janeiro da tríade Lula, Sérgio Cabral e Eduardo Paes, fantoches aliados e necessários à ordem dominante! Rio de Janeiro contra a covardia em defesa dos royalties, majoritariamente privatizados e longe de favorecer o conjunto da população do país, que precisará acompanhar, mesmo pedindo para Galvão calar-se, a imposição do sonho de um hexa cuja Taça jamais tocará! Rio de Janeiro das belas praias e paisagens mostradas nas novelas globais, todavia dos caveirões e incursões policiais nas favelas. Rio de Janeiro das contradições de qualquer cidade grande, que enfrenta a exacerbação da violência, do desemprego e da miséria.

E é justamente essa concreta realidade que extingue sonhos, exatamente nas suas raízes. Crianças e jovens que nascem nesse mundo cruel, mas que necessitam conhecer alternativas para um futuro qualitativamente diferente. Wesley Guilber Rodrigues de Andrade, de 11 anos(2); Luan Victor da Silva Nascimento, de 13(3); Julia Estácio dos Santos, de 12(3), possuem nomes e idades diferentes, não moravam nas mesmas localidades e talvez não pensassem em ter as mesmas profissões. Entretanto, não poderemos ir além das suposições. Em comum, essas crianças brincavam, estudavam e certamente sonhavam, mas tiveram esses verbos interrompidos diante da barbárie cada vez mais presente em nosso cotidiano: serão transformadas em estatísticas já que não estão mais diante de nós! Por pouco não foram incluídos mais nomes na lista acima, já que a bala apenas acertou objetos da creche em Acari(4) e o braço direito de Ana Paula Gomes, de 7 anos(5). Entretanto, tantas outras crianças e jovens permanecerão vítimas da mesma crueldade.

Descobrir o verdadeiro sentido das coisas é querer saber demais, pois nossos conhecimentos devem se limitar à manutenção da engrenagem capitalista, que parece um inimigo invencível e enaltece a lógica de que é fácil ceder em vez de lutar, aprisionando nossos corpos sob a regra de que tudo se vende, se compra e se consome. Apesar das tentativas, nossos sonhos ainda não funcionam como mercadorias. Já que sonhar ainda não custa nada (será?), viajemos nos braços do infinito, onde tudo é mais bonito, nesse mundo de ilusão! Sonhemos com os pés fincados no chão e transformemos o sonho em realidade, pois nossos sonhos não podem continuar impossíveis(6).


*Gabriel Rodrigues Daumas Marques
Professor de Educação Física e Mestrando em Educação (UFRJ)


(1) Linha Vermelha terá muros de segurança e isolamento acústico. Ver http://odia.terra.com.br/rio/htm/linha_vermelha_tera_muros_de_seguranca_e_isolamento_acustico_231338.asp
 

(3) Duas crianças morrem por bala perdida no Rio, diz PM. Ver http://www.expressomt.com.br/noticia.asp?cod=66361&codDep=2

(4) Imagens que causariam espanto e revolta em qualquer país do mundo. Ver  http://www.redecontraviolencia.org/Noticias/659.html



(6) Vale a pena conferir e refletir a partir das músicas “Sonho de uma flauta”, de O Teatro Mágico http://letras.terra.com.br/o-teatro-magico/960864/; “Sonho Impossível”, de Chico Buarque http://www.letras.com.br/chico-buarque/sonho-impossivel; e “Sonhar não custa nada! Ou quase nada”, samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, de 1992 http://letras.terra.com.br/mocidade-rj/47467/