sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Sem direito ao aborto*

Trabalhadora de padaria é atacada por ex-companheiro. A matéria poderia ser a mesma, recordada, reescrita, não fosse pela localidade, pelas características dos sujeitos envolvidos, pela data em que foi publicada e pelas conseqüências trágicas. Na padaria ao lado de minha casa, no Engenho de Dentro, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, na última terça-feira, Daiana Alves da Silva, de 24 anos, foi surpreendida pelo ex-marido e pai de suas duas filhas. Enquanto trabalhava, o sujeito chegou por trás, ateou gasolina e riscou o fósforo antes que Daiana conseguisse fugir.(1) Há pouco mais de 2 anos, em Araraquara-SP, uma balconista de padaria de 17 anos levou três tiros de seu ex-namorado, um jovem de 21 anos, que ainda amarrou seu corpo em pedras para que afundasse nas águas do Rio Jacaré.(2) Até onde sabemos, Daiana se encontra em estado grave no Hospital Municipal Salgado Filho, com queimaduras em 45% do corpo.

Infelizmente, o cotidiano é ainda mais cruel, pois não se trata apenas de mulheres que trabalham em padarias. Há menos de um mês, cenas horripilantes não eram ficção: Maria Islaine de Morais, proprietária de um salão de beleza, de 31 anos, levou sete tiros do ex-marido, na Região da Pampulha, em Belo Horizonte-MG.(3) Em outubro de 2008, em Sorocaba-SP, Daniel Pereira de Souza assassinou com um tiro na cabeça sua ex-namorada Camila Silva Araújo, de 16 anos, com quem tinha um filho.(4) Em setembro do ano passado, em São José dos Campos-SP, Marta Batista do Nascimento, de 48 anos, foi baleada no peito pelo pedreiro Jerônimo, que se suicidou e matou outras duas pessoas.(5) Não tenho dúvidas de que esse breve levantamento é miúdo diante de casos que se multiplicam país afora e que possuem características em comum: muitas das vezes há queixas e denúncias por parte das mulheres vítimas de agressões, que são negligenciadas ou não recebem a devida atenção por parte das autoridades. Tal quadro se configura em mais um reflexo da podridão da lógica opressora e machista da sociedade capitalista.

Recentemente, fiquei impressionado ao ler uma chamada para leitura de matéria em um blog, publicada pelo mesmo veículo de comunicação que se alarma – ou se usa da matéria para vender mais? – com o caso de Daiana.(6) O cabalista Shmuel Lemle publicou O papel do homem e da mulher, explicitando que a mulher veio ao mundo para ajudar o marido na sua correção espiritual e no seu processo de desenvolvimento e que sem ela o homem não consegue atingir o máximo de seu potencial. Flávio Alves da Silva pode muito bem ter lido uma baboseira dessas e não aceitou não poder chegar ao máximo de seu potencial, já que Daiana decidira romper o relacionamento! Perdoai-os, será que eles não sabem o que fazem, o que escrevem e o que defendem?

A lição cabalística é mais uma das facetas sobre as quais se ergue a divisão sexual do trabalho. A partir dessa simplista postagem, nota-se um forte argumento, uma legitimação do machismo, que, ao chegar no seu extremo, pode desencadear assassinatos, ameaças e ações truculentas contra as mulheres! Em outros momentos ou em outras culturas, serve para garantir a poligamia ou a existência dos dotes. Elas não podem ter o direito de decidir? Historicamente, tem sido importante para a conservação da ordem vigente a fidelidade da mulher, objeto reprodutor e responsável pelos cuidados com a casa e os(as) filhos(as). O próprio Dia Internacional da Mulher é deturpado pela ideologia burguesa para expansão do consumo.(7) E dia-a-dia acompanhamos nos programas televisivos a exposição exacerbada de bundas, corpos-violões ou capôs de fuscas; em letras de músicas e coreografias que, sutil ou de maneira escrachada dignificam cachorras, galinhas, piranhas, novinhas, popozudas presas em gaiolas ou frutas transgênicas fresquinhas para serem chupadas e/ou comidas! O sentimento de propriedade privada é evidenciado na magnífica criação artística recente, que necessitou de duas pessoas para compor que a mulher é a mulher e melhor que uma mulher só dez mulher!(8)

Não, elas não podem ter o direito de decidir. As ricas até conseguem com maior segurança, de maneira escamoteada! As pobres terão maior dificuldade de enfrentar as avalanches ideológicas, fortalecidas pelas pressões de uma Igreja tirânica, que esteve sempre ao lado dos poderosos em busca de ouro, status e poder. Entretanto, aquela que já mandou para a fogueira e financiou guerras, hoje hipocritamente afirma que as mulheres devem prosseguir com seus instintos maternais e defender a vida!

No texto da Lei 11.340, em vigor desde 22 de setembro de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, encontra-se a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Poderia aprofundar os pormenores da Lei assim como a infra-estrutura necessária para implementação rígida da mesma, como uma maior existência de delegacias especializadas, proteção irrestrita às vítimas – antes das fatalidades – com apoio psicológico, educacional e de assistência social etc. Pode-se dizer que avanços aconteceram em alguns sentidos, como a participação de mulheres em profissões masculinizadas ou até mesmo a homologação da Lei mencionada. Todavia, os retrocessos possuem muita força, ao pagar salários desiguais para trabalhos iguais; ao não serem construídas creches para atender a real demanda; ao criminalizar o aborto etc.

Se a dominação da mulher pelo homem se origina a partir da necessidade da exploração do ser humano pelo ser humano, devemos radicalizar e fazer nascer novas necessidades e novas relações, sem que essas sejam abortadas.


*Gabriel Rodrigues Daumas Marques
Professor de Educação Física e Mestrando em Educação (UFRJ)


(1) Matérias de 16/02/2010:

(2) Matérias de 20/01/2008:

(3) Matéria de 20/01/2010:

(4) Matéria de 20/10/2008:

(5) Matéria de 15/10/2009:

(6) Matéria de 07/02/2010:

(7) Luta Mulher, de Vivian Machado Dutra:

(8) Mulher, Mulher, Mulher (idéia fixa), de Neguinho da Beija-Flor e Murilo Rayol.

4 comentários:

  1. Muito bom o texto!
    Parabéns Gabriel!
    bjinhos.
    Marjorie

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  2. Como é dificil acreditar que coisas desse tipo ainda acontecem... =/

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  3. Mandou muito bem, Gabriel!
    É repugnante ver que nós mulheres, ainda hoje, somos vistas e tratadas como propriedade privada do homem. Seja de maneira direta ou indireta. Somos bombardeadas o tempo inteiro pela mídia em geral, em novelas(onde as mulheres são dondocas sustentadas pelos seus maridos e aceitam as traições dos mesmos, porém, elas não são aceitas quando os traem), em comerciais e programas de humor(onde a mulher exibe sua beleza e só)e etc... E isso tem repercussão aqui fora. Estão aí os fatos nos jornais.
    Fora o padrão de beleza que é imposto à mulher, com aquela famosa frase: mulher tem que se cuidar!
    Eu pergunto: tem que se cuidar por quê? pra agradar seus respectivos "machos"? Para ser aceita pela sociedade machista?
    A mulher não é vitrine!
    O machismo ainda impera de máscaras por aí e enquanto eu respirar, vou lutar contra.

    "Da luta não me retiro. Me atiro do alto e que me atirem no peito. Da luta, não me retiro."

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  4. Um verdadeiro manifesto em favor da libertação da mulher. Enfim, um Homem. Tanta sensatez e coragem não são muito comuns à espécie. Desconfiava q não encontraria um de verdade nesta vida. Um só q não temesse o poder feminino e em razão deste temor, trabalhasse com tanto afinco para sabotá-lo. Tens meu reconhecimento e admiração, Gabriel. Estou encantada!

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