sábado, 18 de setembro de 2010

De trajetos escolares a tabuadas*

O segundo semestre de dois mil e nove trouxe lágrimas e luto em seu primeiro dia. Vermelha ou laranja, a linha se dividiu: de um lado, mochilas, merendeiras, cadernos, materiais escolares; do outro, um carro capotado, com crianças e jovens mortos ou feridos. Mesmo com os olhos fechados para não acreditar na trágica cena, catracas, roletas, retrovisores surgem nas imagens e mais uma jovem tem sua vida perdida, sob as rodas de um ônibus.

O supersensacionalismo midiático e a culpabilização de indivíduos nos impedem de um olhar crítico e uma análise criteriosa dessas circunstâncias. Buscando transcender esse quadro, algumas questões valem ser problematizadas. A lógica de funcionamento da sociedade se estabelece por meio de exploração do trabalho alheio e também não permite à totalidade da humanidade o acesso aos bens sociais produzidos.

Enquanto é imposta a escassez de uma Educação Pública, Gratuita e de Qualidade, pais e familiares redobram seus esforços para garantir seus filhos e filhas em instituições de qualidade, mesmo a quilômetros de distância de seus lares. Esses mesmos pais precisam trabalhar durante longas jornadas por dia e não têm tempo para levar e buscá-los na escola. Podem encaminhá-los para o transporte público ou contratar serviços privados de transporte escolar.

Na primeira opção, talvez uma condução não baste, o tempo de espera se prolongue e o receio de exposição à violência urbana se torne cada vez mais evidente e necessário. Ademais, motoristas são cada vez mais superexplorados: não bastassem exaustivas e estressantes horas no caótico trânsito carioca, precisam atualmente dirigir e contabilizar pagamentos e trocos enquanto seus patrões aumentam sua lucratividade ao pagar apenas um salário para duas distintas ocupações.

Na segunda opção, precisam confiar no que há de mais próximo. Mais atacada pela mídia por conta da ilegalidade do transporte clandestino, o esvaziamento das manchetes é proposital e não nos leva para além do que enxergamos. Pode ser um desses motoristas algum trocador demitido por conta da paulatina extinção desse emprego e que optou (será que realmente podemos optar?) por buscar uma forma de sobrevivência? Quanto custa a legalização? Quem são os grupos do setor de transporte envolvidos nas licenças para liberar tal funcionamento? Esses mesmos pais que trabalham diariamente para sustentar suas famílias teriam condições de pagar ainda mais caro por um transporte legalizado? Os impostos, taxas e tarifas são direcionados para manutenção, sinalização ou melhorias de nossas ruas e estradas cada vez mais esburacadas e privatizadas?

Na Barra ou na Linha Vermelha, tragédias não surgem do nada, mas são impulsionadas pelas péssimas condições materiais de vida em nossa sociedade, onde seres humanos são explorados, coisificados e se transformam em estatísticas ou campanhas que jamais se aproximam da complexidade de nossos problemas reais.

O investimento em Educação propiciaria colégios com infra-estrutura, materiais didáticos e profissionais da Educação valorizados em cada município, em cada bairro, possibilitando que crianças e jovens se deslocassem caminhando ou pedalando. A estatização dos transportes coletivos acabaria com a farra de mafiosos empresários, melhoraria o planejamento urbano e diminuiria o próprio (insano) trânsito. Mas tais propostas sempre ficarão no futuro do pretérito enquanto o sustentáculo concentrador de riquezas permanecer vigorando.

Deixo aqui algumas reflexões in memorian de Luana da Silva Macedo, Rayanne da Silva Souza, Esther Reis Fernandes da Rocha, André Lucas Couto Telles e Vinícius Lopes da Silva. Esses quatro últimos tiveram abruptamente retirada a oportunidade de cantar sua última Tabuada! Com o coração e os olhos lacrimejando, envio os votos de solidariedade e força a amigos e familiares dessas jovens vítimas a quem devemos singelas homenagens.

Entristecido, as próximas contas e o orgulho de ex-aluno do Colégio Pedro II permanecerão abalados durante bastante tempo, mas continua acesa a chama e viva a luta, para que cada criança possa se referenciar numa Tabuada, contemplando-a com entusiasmo pelo pertencimento à escola, onde seus conhecimentos possam ser construídos com qualidade e destinados à humanidade. Pedro II, tudo ou nada? Alunos e ex-alunos optam por Tudo. E nós, que opção construiremos para o futuro da sociedade?

 
*Recupero acima um texto publicado no dia 3 de julho de 2009 no blog do Movimento Quem Vem Com Tudo Não Cansa, após o acidente de carro que deixou mortos e feridos estudantes do Colégio Pedro II.
Na data em questão, lecionava Educação Física na rede estadual de ensino,
além de Mestrando em Educação (UFRJ) e militante do Coletivo Marxista

Nenhum comentário:

Postar um comentário